domingo, setembro 21
o que foi isso?
Fábio acordou no meio dos seus jornais logo que começou a movimentação na praça. Olhou pra baixo, leu as últimas notícias do dia de ontem e riu um pouco porque o dólar não mudava mais a sua condição miserável. Sabe, Fábio era um cara legal, meio rude e gostava de amarrar os tênis antes de calçá-los, mas era gente boa. Sua mulher estava deixando-o louco com a história de fazerem coisas juntos que ele nunca quis fazer. Certa vez inventou de fazer teatro de fantoches junto com o marido. Ahhh ela comprou quase uma loja inteira de meias e botões para fazer em casa seus próprios fantoches. Fábio, clínico geral bem sucedido, com poucas mortes na consciência foi obrigado a fazer parte do teatro de fantoches, primeiro contribuindo financeiramente com tudo, depois, fazendo os fantoches em si, mais ainda... Interpretando um fantoche durante dois aniversários infantis. Ele perguntava pra ela porque ele tinha de fazer aquele tipo de coisa, ela não sabia dizer a resposta que ele queria ouvir. "ah... porque é legal!" animada fazia os fantoches enquanto Fábio fazia o papel de um motoboy num acidente de moto "fantochiado". A moto era de plástico. Depois do segundo ato, ele xingou Sonia com toda a verdade que escondia no pescoço. "Eu odeio motoboys. Nunca mais vou fazer isso de novo." Sonia como que se assustou, pensou que perderia seu parceiro, seu amante, amado marido. Ligou pra sua mãe, pra sua melhor amiga, sua psicanalista e pro porteiro (esse último apenas porque ele sempre sabia de todas as fofocas do prédio). Chegou numa conclusão. Precisava apimentar seu casamento. Fábio teve alguma surpresa quando viu que era sua mulher nua chegando ao hospital já vestida de doente enquanto entrava de maca com muita gente fazendo trabalho ali ao redor. Ela havia sido atropelada e perdera parte do pé. Nua na maca, toda a paixão e desejo de Fábio foi despertada como um tapa na cara. Depois de resolver as complicações, de escolher a prótese para o pé direito de sua mulher, fez o melhor sexo de sua vida durante seu turno do meio dia, com todos gritando por atendimento e sua mulher por prazer dentro do quartinho do hospital. Pronto, dados nove meses era uma linda e saudável criança que nascia. Seus pais haviam se tornado gente, pararam de fazer loucuras, Fábio admitiu que motoboys talvez tivessem direito de viver afinal de contas enquanto Sonia colocava fogo em todas as meias de fantoches. Decidiram mudar, se tornarem normais e fazer coisas de gente normal. Tédio. Era o resumo de suas vidas quando não estavam se preocupando com Michele estavam cuidando dela. O começo foi lindo e romântico, chás disso, daquilo, tudo. Amigos vinham visitar o mais novo membro da família Frennes com presentinhos, mimos e sorrisos largos. Nada melhor que uma criança para fazer o entendimento entre um casal. Sim, Fábio realmente acordou hoje no meio de seus jornais. Não que antes não tivesse jornais, mas agora tinha jornais e apenas jornais. Eles eram tudo. Seu banheiro, sua roupa, seu quarto, suas coisas. Aos três anos de idade Michele já corria como uma louca dentro de casa. A casa era toda Michele, adorada Michele. Fazia da vida de seus pais a maior alegria do mundo, já havia começado a tentar ler, sua mãe mostrava os desenhos dos números, das palavras e dizia o que era. Ela já sabia "ler" seu nome e de seus pais. Fábio era apegado a ela como uma árvore é "apegada" a terra. Depois que ganhou sua motoca saia correndo pelo gramado de casa enquanto seus pais, de olhos brilhantes a admiravam enquanto faziam suas tarefas caseiras, ele lia o jornal, tomava uma limonada, Sonia fazia as limonadas e costurava ou ficava simplesmente ao lado do marido cuidando de sua filha. O pior dia de suas vidas começou com um belíssimo sol, sem suspeitas de tragédia. Mais um dia que iam ao parque brincar no gramado, seus pais agora se entendiam, a filha acalmava suas vidas, tinham um objetivo quando voltavam pra casa, isso os mantivera unidos até o momento que Michele correu atrás de uma bola que correu diante dela até a beira da rua. Ao se aproximar da bola um garoto que vinha voando em sua bicicleta esbarrou em cheio com a roda da frente em sua cabeça no momento em que ela se agachava para alcançar a bola. Seus pais não disseram nada, apenas acompanharam lentamente a cena de sua querida filha sendo atropelada por uma bicicleta enquanto se levantavam apuradamente para resgatá-la. Era tarde, os médicos fizeram todo o possível, mas quando o cirurgião voltou da sala olhando fixamente para o chão... Sonia desabou, Fábio sentia um buraco no meio do corpo que lhe corroia as entranhas. Se arrependimento matasse, teria sido uma família inteira naquele belo domingo. Suas culpas acabaram com suas vidas. Sonia via sempre um defeito nos atos de Fábio, que por mais que se esforçasse não chegava nem perto das novas exigências de Sonia. Ele morria todo dia enquanto dormia, sonhos/pesadelos vinham atormentá-lo sempre que fechava os olhos enquanto Sonia apenas ficava sentada no quarto de sua filha, segurando uma linda foto da menina se balançando no balanço com um sorriso lindo enquanto se embalava. Não durou tanto assim. O casal agora se autodestruía era como combater seus anticorpos viver sob o mesmo teto. Uma das únicas pessoas capazes de ajudarem era justamente a que exigia explicações. Sonia apontava a culpa para Fábio, porque se ele não tivesse dado aquela bola, ela não teria corrido atrás dela. Sonia era culpada por estar distraída enquanto sua filha corria para a morte. Fábio largou o emprego assim que pensou consigo mesmo: "Nada mais importa." Ele estava formalmente desistindo de viver. Sonia fez diferente. Sabia que a culpa era sua, fez questão de se internar num sanatório, o melhor lugar do mundo para qualquer pessoa que quer se manter louca. Funcionou. Fábio agora tinha amigos, eles tornavam tudo muito mais fácil. Obviamente um cachorro não iria culpá-lo, ao menos não com mais que olharem, além do que dividir um pouco de sua miséria o fazia sentir melhor, era uma penitência que ele se obrigava a passar. Até o dia em que passou a tentar se atirar na frente de bicicletas. Passou o resto de sua vida atormentado em seus sonhos, onde sua linda Michele desaparecia ao correr por uma colina verde. Os fatos nunca foram alterados, com todas as dores, com toda a culpa, não teve deus que escutou seus gritos de horror ao entenderem a realidade. A culpa não mudou os fatos, mesmo quando ele se atirou na frente de uma Scania, nada mudou no mundo.
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