segunda-feira, abril 27

o tio de chapéu

Era uma viagem comum.
Ele não podia fumar ali dentro, mas seu vício o fazia pensar em quão bom seria. A estrada corria na escuridão do lado de fora do ônibus. A janela aberta e conjunto com a posição do seu braço fazia com que o vento adentrasse pela manga da jaqueta até seu peito, causando um ar de liberdade interna. Livre de tudo, enquanto fitava as moitas que passavam voando ao lado do ônibus.
A noite cálida trazia para dentro daquele vagão auto-suficiente um passageiro a mais, de tempos em tempos.
O click clack clássico do pisca laranja podia ser visto de longe, uma luz indicando uma parada. O motorista habilidoso fazia a porta parar bem de frente para o novo passageiro, este, entrava encarangado, mãos no bolso e certo alívio por ter conseguido um ônibus aquela altura da noite.
...
Passou-se meia hora. Uma velha gorda era a última a entrar, se sentou bem próximo a porta de entrada. Gorda como um saco de batatas atirado sobre a carroça, a velha se expandia por todo o espaço dos dois bancos que agora gemiam com o terreno quebradiço ao segurar as ancas da velha.
O penúltimo cara a entrar parecia um claro roceiro, homem magro, forte e de pele maltratada por sol e enxadas. Sentou-se no meio no ônibus, calmo e sereno. Simpatizei com ele, parecia ter uma alma leve, de dever cumprido, de certo vinha da cidade e voltava para casa. Trazia com ele uma sacola daquelas feitas de saco de milho, não sei bem o nome daquela espécie de sacola, mas é algo simples, duas alças de corda e o saco. Parecia cheio.

Andando durante a noite, notei o quanto gostava daquilo ali, da breve solidão, da solidão temporária e certa. Viajar sozinho, à noite e estranhos no caminho, vento as luzes longe... Romântico ou brega, eu me encaixava bem naqueles termos. Só um latino americano sem dinheiro no bolso nem parentes importantes. No caso, indo para o interior.

...
Dado um período plácido, mais uma freada pensada e a porta para diante de outro novo passageiro. Este sobe tranquilamente o ônibus e quando se vira para o corredor, visualiza-o com calma e procurando algo.
Ainda em pé, o motorista arranca o ônibus, o cobrador se aproxima dele, e pede por que bandas ele irá passar. Segurando-se com a mão esquerda num dos ferros da estrutura, usa a outra mão para sacar um trinta e oito preto da parte de trás da calça.
-Fica quieto e continua dirigindo. Afirmou apontando o cano para o motorista que lógico, quase perdeu o controle ao se deparar com tamanha audácia.
-Calma aí moço! O cobrador se escorava com as mãos meio pra cima meio pra frente, não sabia se tentava algo ousado ou ficava quieto.
-Passa a grana dos teus bolsos pra cá. Anda logo!
O cobrador trêmulo com as sacudidas do ônibus e de medo por ver uma arma apontada para ele tirava aos poucos notas de troco do bolso e as atirava em direção do meliante.
-Anda logo porra! Um tiro voou pela janela aberta ao lado do rapaz.
Agora todos se puseram quase de pé e prestavam atenção. Alguns bateram suas cabeças na janela no susto do tiro, e todos entendiam o que estava acontece quando olharam com caras de gato para frente do ônibus onde tudo acontecia.
-Atenção todos aqui! Quero que sentem cada um no canto de sua poltrona, eu já vi que não existem crianças, por tanto todos na poltrona do canto ou vou começar a usar meu brinquedo!
-Tu, seu babaca, pro fundo do ônibus. Disse ao cobrador e com a ponta do revolver indicou a ele para deixar no chão o bloco de passagens.
Com os nervos a flor da pele, todos no ônibus fizeram o que ele havia pedido. Até mesmo o simpático tio da roça, olhava para o homem com um desprezo nos olhos, mas fez o que lhe pediu. A velha gorda, engraçado, não tinha como sentar no canto, pois o canto era o meio, o lado e o outro lado tudo junto.
Quando o homem começou a andar por dentro do ônibus, todos se puseram como estátuas, cada um no seu canto. O homem foi um a um pedindo carteira, que dissessem o nome e celular.
Peculiar a pedida de do nome, talvez fosse para achar alguém conhecido, ou quem sabe apenas curiosidade.
A velha gorda, aparentemente se mijou. Não sei se era vômito ou o que, pois não consegui a ver vomitando, mas vi a poça de algum liquido no chão do ônibus, na altura dos bancos onde ela sentava.
Ao chegar próximo do tio da roça, o homem mandou com grosseria que ele tirasse o chapéu imediatamente. Eu me sentava próximo ao velho, duas poltronas atrás, e tinha o sangue fervendo de raiva por não estar armado para dar um fim aquele maldito.
Ele não tirou o chapéu, ficou imóvel. O homem armado e agora suando, ficou nervoso e atirou mais uma vez, agora, quebrando o vidro fechado, fazendo algumas mulheres darem pequenos choros de medo e meus ouvidos doerem.
O velho ia levantando um lado da bunda para alcançar o bolso da calça com uma mão quando de súbito atacou o homem armado. Este disparou instantaneamente acertando o tio no pescoço e fazendo-o voar para trás. O homem ficara atordoado com a surpresa e um pouco instável.
Num golpe de sorte, me levantei do banco e empurrei o homem com a planta do pé para frente, o motorista freou bruscamente e o homem disparou mais uma vez para o teto do ônibus e caiu rolando no meio de outros passageiros.
...
Expliquei o que pude para a polícia, que de alguma forma resolveu não fazer nada contra nenhum passageiro dizendo que foi por defesa pessoal de cada um. O velho armado morreu espancado e também com um tiro no peito.
O velho que estava de chapéu deixou três filhos para trás. Era viúvo, e por relativa sorte, dois de seus três filhos já eram quase casados. Pessoas do campo, viviam bem nos arredores de Sander.
Fiquei pensando o que passava na cabeça daquele senhor. Se fosse eu, o que teria feito. Foi uma morte honrada, talvez burra. Mas o que alguém que já teve mulher e filhos pode querer da vida? Sempre existe mais para viver, mas isso depende do nível de vontade de cada um.
A velha gorda havia se mijado mesmo. Eu, bom, vomitei depois, quando vi o homem armado desfigurado banhado no sangue no meio do ônibus. Incrível o que a raiva e a união podem fazer.