quarta-feira, fevereiro 16

De volta

Fazia o que? Acho que mais de mês que ela estava lá, deitada num canto, gélida, levemente loira. Coisa linda de se ver, era bastante quieta e doce. O toque dela na boca era marcante, daqueles que tu não entende o que esta acontecendo até que finalmente sua língua é completamente domada.
Confesso que antes de cair de boca saquei o chapéu dela com carinho, sem balançar nem nada. Abri a Baden Baden Ale Golden com um pouco de remorso, ela estava lá descansando fazia algum tempo, mas hoje... hoje eu tive que me exaltar, passar por cima das últimas. Hoje eu me vi no espelho, nú. Risadas, muitas risadas.

Sim, estava eu, barbado, bêbado e nú com a mão no bolso.

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Ele se levantou com um gosto ruim na boca. Tateando o chão achou seu celular com alguma dificuldade, finalmente acertou a combinação de botões para desbloquea-lo e fazer o alarme parar. Maldita campainha das antigas. O trim trim era um sino gigante gritando em seu ouvido (pense numa pessoa vestida de sino gritando "triiimmm!!!").
Depois daquele suspiro de alívio junto do primeiro instante de silêncio, ele se virou e olhou para o teto.
- Ahhh que canseira.
Voltou a dormir.
...
Acordou.
Estava sentindo que o dia estava na metade. Sua barriga roncava e até então ele ainda não tinha nem levantado, sequer lavado o rosto. Era só mais um daqueles dias solitários de sábado, quando nos levantamos dizendo que nunca mais vamos beber, mas ali pela tardinha já preparamos mais uma caipirinha.
O primeiro passo foi revelador. Maço de Marlboro vermelho com apenas uns três ou quatro cigarros. Deu umas mascadas no nada com saliva e lembrou que era esse mesmo o gosto na boca. Foi no banheiro e se lavou. Parou um pouco olhando no espelho lembrando o que fez ontem...
- Cerveja, amigos, cerveja, mulheres estranhas, cerveja, amigos, mulheres bonitas, cereja, amigos, cerveja, mulheres maravilhosas.
Riu sozinho antes de escovar os dentes.
Buscou um livro pequeno, daqueles de bolso, LM&PM, e foi se sentar na sala para ler. Acabou sentado olhando pela janela com os pés escorados numa cadeira na frente do sofá em que estava. Não leu nada, nem viu nada, parou para pensar.

- As vezes penso que seria melhor viver numa época mais lenta, cômoda. Algo como eras medievais ou muito antes disso, em tribos e vilas isoladas de tudo, em pequenos mundos.
- Ia ser tri massa.
- Podcrê!
- ahhahaah
Sorriso.
- É, confesso que essa de conversar é nova pra mim. Mas é legal, me sinto estranho, mas é bom, é como um auto psicólogo.
- Legal né? Mas tu vai me pagar em cerveja!
- Só se for agora!
Levantou e buscou uma na geladeira. E pensar que havia até imagino a idéia de parar de beber.
- Agora sim, podemos continuar.
- Sim doutor.
- Bom, eu sinceramente não tenho reclamações. Eu tenho tudo, e sinto que posso ter tudo.
- Sinto é coisa de viado.
- É... mas para nunca fui macho, segundo um teste na internet, o fato de possuir meias brancas já era um sinônimo de viadagem, visto que branco combina com muita roupa e macho que é macho não pensa se está combinando...
- É...
Olhou suas meias. Cinzas. Alivio.
- Bom, negócio é que mesmo não tendo do que reclamar, eu não consigo parar de reclamar, eu vejo os problemas, vejo as coisas erradas e me sinto mal com elas.
- Exemplos?
- Bom... ah, sei lá po, não lembro de cabeça, mas... bah, não sei...
- Uma merda quando isso acontece né? Tu sabe, tu eventualmente lembra e passa por certas situações seguidamente, entretanto, nunca temos um exemplo na ponta da língua.
- É...

A quietude voltou quando terminou um outro copo, olhava ainda para a mesma janela, tinha sol lá fora e o formato do prédio atrás dele lembrava alguma espécie de gigante. Ele via aquela sombra como se estivesse viva, e fitando as nuvens sem focar em nada, via guerreiros, alguns que cavalgavam, outros andavam no meio do azul, tinha dois com lanças, ou eram rastros de jato...

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Tocava rock no rádio, era a bateria de ar que ele sempre tocou, aquela de manter um ritmo no chipô e de tempos em tempos dar umas batidas bem dadas no prato, era raiva que se dissipava daquelas coisas que ficam trancadas na garganta, aquela coisa de se expressar, aquela coisa...