sexta-feira, outubro 26

Minhas várias

A natureza nostálgica impregnada em minha pele insiste, persiste, luta para ficar. Normalmente ela vence. A falta que uns poucos quilos de carne me trazem. Todos os dias essa guerra interna. Tentando de uma forma ou outra ser menos velho, buscar a idade atual, mas é complicado, pensando sempre que o pensamento não para, voa para um lado tropical e me arrasta junto.

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Sinto um sol mais seco por estes lados, essas manhãs começam quase sempre sem horário, muito preguiçosas e com falta de vergonha na cara. Mais se parece um ninho, um pic-nic. Umas coisas pelo chão, umas comidas por terminar, e atualmente tem até aparelhos eletrônicos abertos esperando por atenção.

A cama normalmente é o nosso habitat, tem esse vento soprando na cara, particularmente hoje está mais forte, é seco e fresco e consigo ouvir as árvore balançando. Ignorando que estamos numa cidade assim, e que nossas vidas não param, parar e sentir tudo isso é sinal de velhice. Estarei pedindo pra morrer?

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De repente me sinto como um adolescendo de novo, travado numa rede de pensamentos forçosamente velhos buscando pensar ao invés de agir. Desculpas para que não precise provar as capacidades, talvez seja falta de colhão, medo de errar inconsciente. Ainda não sei.

Recém me descobri um materialista camuflado. Não quero comprar tudo, ter tudo, mas o pouco que tenho é tão meu que não consigo me desfazer com facilidade, seja a forma que for. Nesse caso, uma perda, um acidente, por assim dizer. Todos sabem, cuido mais das coisas que de mim e que certamente faria diferente para que isso não acontecesse.

Talvez seja o fato de ficar meio sozinho por qualquer lado que me leve a tanto, a tanto pensar e ficar cada vez mais quieto.

Minha velocidade não está como um dia já foi, me sinto lerdo para vários temas, e a comunicação piora a situação. Tento me forçar aos limites possíveis, mas não encontrei resultados satisfatórios. Acabo deixando de procurar a necessidade da velocidade, e como desculpa digo que é mais fácil, conveniente e melhor, fazer de outra forma. Acontece igual quando depositam confiança, sinto peso de responsabilidade de não decepcionar, e como uma criança criada a base de resultados, busco formas de não precisar provar minhas capacidades para seguir apenas com o histórico, que um dia foi bom.

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Tento acreditar que o acaso é amigo do meu coração, sempre que fala comigo. Sinceramente, tem sido difícil ouvir. Talvez seja o barulho dos carros na rua, quem sabe o idioma me confunda, ou minha audição está piorando. Quem sabe faltam alguns apoios para certas coisas, pois ainda não me vejo continuando uma vida por conta própria, é mais uma vida de apoio. Acredito.

Segundas feiras

Nos primeiros dias a coisa foi russa, no segundo dia já era viajem, já estava atrás de um balcão servindo chopes e tentando falar a respeito de um líquido que por mais que adorasse não entendia muito. Essas feiras são praticamente todas iguais, muda algumas coisas internas, mas o ponto chave é sempre igual. Chamar pessoas e vender chope, esse é o trabalho básico.

Neste caso, não tinha experiência com o pré-trabalho, que consistia em garantir que tivéssemos todo o equipamento necessário, verificar a logística, os detalhes necessários para que o trabalho básico pudesse ser executado sem problemas durante toda a feira.

A correria começou uns quatro dias antes da feira. São copos de degustação, copos descartáveis, copos de vidro, máquinas, colunas, mangueira, pinchadores, conectores, manômetros, CO2, balcões, pregos, parafusos, ferramentas, cartazes, etc. Era buscar e levar, apenas ouvia algumas rápidas negociações por telefone e de repente surgiam mais coisas pra se fazer.
Dentro desses dias iniciais repetimos a lista de coisas que nos faltava e no final era isso, a lista seguia a mesma, mesmo depois de fazer ligações e ver outras coisas, algumas das mais básicas sempre faltavam. Murphy.

Era o dia da primeira feira, La Florida, ficamos de nos separar para que eu pudesse montar os estandes e ele correr para buscar coisas que nos faltavam. Resultou que até praticamente abrir a feira chegava ele com o que faltava, e havia dado problema com os cartazes. A falta de luz na feira foi um bom problema pra poder montar os três móveis. Bastante sol, o suor pingando, parecia realmente um trabalhador. Terminou o dia e eu estava tenso, havia mais uma feira para amanhã, e essa seria só eu.

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Descobri um pouco antes da uma da manhã que a feira do dia seguinte começava as dez. Já tinha certo que chegaria umas duas da tarde, atrasado, perdendo dinheiro, público. Deu o acaso de eu me perder no caminho para lá, afinal não tinha absolutamente nenhuma informação de onde era exatamente e estava perdido dentro da maior cidade do país. O GPS ajudou, mas não mudava o fato de estar completamente errado em meus caminhos.
Se entender alguém ao vivo as vezes era um problema, entender alguém por telefone poderia ser muito pior. No final entendi tudo, e o entendimento estava certo, no sentido literal, mas nada correto no que diz respeito a localização real. Depois de duas horas andando de carro, cheguei ao destino, numa espécie de vilarejo meio rural longe de Santiago.
Terminei de armar as coisas as quatro da tarde.

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As feiras deram lucro, foi uma correria maluca, eu quase mijei nas calças umas oito vezes. Sozinho bebendo devagar, mas vinha gente e gente e gente e eu ali, servindo líquido amarelo com espuminha no final. Era tenso. Deu tudo certo, conseguimos pagar uma máquina com o lucro da feira, fiquei contente com o trabalho.

Terra das oportunidades

As coisas até que iam bem, quer dizer. Tinha sua casa, sua família, seu trabalho. De uma forma ou outra, se conseguia construir suas coisas e mesmo que não tivesse exatamente tudo o que desejava, as coisas vinham e a vida continuava. Num daqueles dias, a coisa mudou e a oportunidade para um mundo novo bateu.

Acordou pensando que era necessário sair, fugir da rotina, mudar completamente, de endereço, de casa, de cultura, de língua. Não foi exatamente planejado, era uma vontade que surgiu, seja lá por criação, por pressão externa ou insatisfação, de repente até poderia ser uma esperança de que fora, ou melhor, longe dali, as coisas seriam melhores, como uma terra prometida, como o lugar sagrado que poucos podem chegar. Claro, teria de buscar sua terra também.

O dia seguinte, louco por devaneios, e pensando no que deveria renunciar para buscar o novo, pensando nas dores que conhecia, na parte boa, de tudo o que a terra das oportunidades poderia deixa-lo realizar. O medo, adaptação, o custo de procurar novos amigos. Estaria apto a fazer isso? Era uma questão de juntar seus trapos em ir em direção ao sol enquanto ele se colocava no horizonte até tocar o mar.

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Que a verdade seja dita. O sol é o mesmo, talvez a umidade não seja e o calor seja completamente diferente, entretanto, isso não muda a oportunidade. Não demorou a dar-se conta do que estava vendo era na realidade a terra prometida que cada um poderia criar, onde bem entendesse. De pouco a pouco foi ficando mais claro que a busca por esse local não precisa ser longe do ninho, ficou cada vez mais claro que os que se mexem chegam lá, e basta ficar sentado reclamando sobre qualquer coisa para provar que não é possível.

Parece besteira pensar que isso todo mundo sabe, mas talvez seja um pouco diferente sentir isso, vivenciar a mudança. O que é necessário é coragem de botar a cara a tapa, não interessa aonde, no final é só isso. Os altos e baixos de cada lugar do mundo existem, em alguns uma coisa pode ser mais fácil que outra, mas de qualquer forma, está tudo aí, basta fazer.

sexta-feira, outubro 5

Coceira

teu sopro, como carícias pelos pêlos, suave
seguido de beijos e mordidas indevidas
um sorriso como vírgula e o ar como afago
o olhar faz o clima, e o beijo me tira do lugar antes,
dos dentes voltarem a minha pele. risada escapando
unhas iriam roçar a pele, num ritmo clássico
redenção nos teus dedos, alívio imediato
mais pra cima, isso, ali do lado
dentes até a nuca naquela evidente satisfação
de um urso incapaz de alcançar suas costas

quinta-feira, outubro 4

Chop Suey com Mosca

Entre umas fungadas e outras conforme esse resfriado deixava, eu fui conversando sobre as comidas da cozinha. A verdade eu não poderia dizer, mas tão pouco queria mentir sobre o que perguntava. A tia da cozinha estava surpreendida e intimada pelo fato de termos cozinhado, enquanto eu retirava os podes dos restos de ontem da geladeira, ela observava atentamente buscando saber o que era cada um deles. Perguntou como fizemos e se havíamos posto determinados ingredientes, a forma de preparo e tudo, toda a alquimia envolta daquele prato de arroz com ervilhas, massa e aquele molho chop suey com frango.

- Mas afinal, por que vocês começaram a cozinhar sua própria comida? Não gostaram da minha?
- Mira, lo que pasa és que nosotros normalmente não conseguimos comer em casa, é complicado pra nós. Não temos horário e acabamos sempre comendo fora de casa. Terminamos comendo na rua, gastando mais dinheiro, assim podemos fazer nossa comida quando temos tempo, isso se tivermos tempo.
- Ah si, entiendo, claro. Ustedes chiquillos comumiente no alcansavan comer aca y ademas que comen arto... bueno, mejor asi.
- Si, de verdad, mejor. Quedamos mas tranquillos. Por ejemplo ahora, yo tengo tiempo, pero Juan se fue hace hora.

O jardineiro estava junto à mesa, comendo a massa com alguma espécie de molho branco que a nana havia feito. Meu prato perto do dele era extraordinariamente grande. Seu prato era basicamente aquela pouca massa com molho. Eu ri pensando que poderia ser eu comendo aquela massa caso nós não tivéssemos negociado com a tia da casa. Não lembro do nome dele, mas era um cara simples, as mãos que tocavam o talher mostravam claramente o que era trabalhar com as mãos, coisa que aos poucos tenho aprendido. Aquela coisa bem poética e dolorida. Calos, mãos duras e pele ressecada, marcada com arranhões e cicatrizes.
De uma maneira fácil, o tema de culinário veio a mesa junto com meu prato e minha fome. Contei a eles que a tradição que dizíamos italiana era ter sempre mais de um prato principal a mesa. Prato principal, para eles, seria algo como arroz à primavera, por exemplo. Aqui o costume é comer massa com molho, só. Ou uma carne com molho no arroz, ou só a massa, ou só uma salada com uma salsicha, enfim. Os pratos aqui são bastante pequenos. A variedade de comidas é quase inexistente quando se faz uma refeição normal. Sempre se é servido e entregue o prato. As panelas sempre ficam no fogão e jamais se verá uma panela na mesa, questão de cultura. Contei-lhes a diferença de cada um se servir e colocar na mesa todas as panelas possíveis, assim como diversas saladas e comidas. A ideia lhes pareceu boa mas logo se partiu para o preço das coisas.

-Sim, aqui é muito caro comer fora. Principalmente nessa altura - referia-se ao setor/bairro/província
-É, tenho visto nos últimos dias...
-Em Santiago em geral, é muito caro, é difícil encontrar um restaurante que não seja, a maioria não tem moscas.
-Como assim?
-Que não é que não seja limpo os outros, mas quando um restaurante não tem moscas, é porque o restaurante é tão caro que nem as moscas entram.

Eu ainda estava comendo, e já tendo um olhar bastante crítico sobre a limpeza dos lugares, fiquei na dúvida se era uma piada ou se talvez fosse real. Afinal de contas, um restaurante mesmo caro, provavelmente é sujo de qualquer forma, assim como qualquer outro restaurante. Minha dúvida o fez praticamente repetir a piada com outras palavras, e mesmo assim eu não consegui rir, imaginei aquelas moscas chegando na frente do restaurante e vendo o preço no cardápio exposto a frente da porta. Conversariam entre si e tomaram o rumo de qualquer lugar mais barato para incomodar os clientes mas a risada não saía.
A verdade é que fui em restaurantes baratos e não havia moscas, talvez as moscas sejam muito exigentes ou esses lugares de que ele fala sejam realmente muito sujos.