segunda-feira, fevereiro 11

Adeus

Não acordou cedo por que não dormiu, foi outra noite pensando na sua mulher, a confusão entre lembrar a dor de enterra-la e a saudade dos seus momentos juntos. Levantou, alisou a cabeça e olhou-se no espelho. Olhos vermelhos, cara de destruído, acabado. Fazia sentido. Não escovou os dentes, apenas lavou o rosto e voltou pra cama. Lhe doeu novamente olhar a cama de casal arrumada do lado dela. O direito.
Cigarro aceso e chinelo nos pés, foi se arrastando pela casa pensando no que estava prestes a fazer. Na sala meio indeciso chegou próximo daquele móvel que ela insistia que se chamava aparador e ele chamava de penteadeira, apoiado numa ponta por um porta-retrato deles um pequeno papel dobrado com certo número de telefone.
Trêmulo ele pegou o celular e se pôs no sofá. Não, seria muito estúpido, olhou a tela com fundo negro e pensou que ao menos no celular ele não costumava manter tanto aquelas coisas melosas de casal. O vazio negro da tela o deixou respirar.
Largou o celular e vestiu uma bermuda por cima da cueca. A primeira camisa que encontrou no roupeiro e o papel direto para o bolso da camisa. Nunca usava orelhão, precisava comprar cartão e finalmente buscar algum por arredores.

Chamando.
- Alô?
- Alô.
- Amm.... Sobre a.... a 35, ainda está, está disponível? - Sua vóz era trêmula e ele não conseguia acreditar no que estava fazendo.
- Podcrê, ta afim mano?
- É, amm... Sim... Eu quero comprar.
- Velho, redença perto dos banheiros as três.
- Tá. Eu estarei... lá.
Tuuu tuuu tuuu...

Ele olhou para o telefone em sua mão, olhou para os riscos e números de puta e táxi colados por dentro da cabine telefônica, trêmulo colocou de volta no gancho. Ia saindo e o telefone fez uma espécie de bip bastante alto e umas tantas vezes. Havia se esquecido do cartão, suor na testa. Foi para casa.
O mínimo trajeto o deixava cada vez mais triste. Passou na frente da ferragem onde comprou tantas vezes buchas e brocas para pendurar os quadros que ela queria, passou na padaria e poderia sentir no cheiro do pão o perfume dela mesclado, mesmo nas vezes em que ele ficava na fila lendo o jornal. A cidade era ela.

O dia foi lento, não decidiu nada sobre o almoço só ficou sentado na sala com tudo desligado. Olhava o relógio e ficava cada vez mais tenso. A cada cigarro, cada tragada o sufocava de uma forma desumana. A hora chegava, ele deveria se preparar para buscar a encomenda.
Levantou-se do sofá, deixou o cigarro por cima do cinzeiro lotado de bitucas, buscou caneta e papel. Papel foi mais complicado do que imaginava, não havia muito e lembrou do caderno de receitas que a mulher usava. Não sabiam cozinhar nada, e só de piada ele escreveu como primeira receita o ovo frito que ela fazia seguidamente. Agora a última página era escrita na mesinha de centro, entre lágrimas e cigarro. Sua receita de morte.

Buscou os bancos mais próximos do banheiro, andou um pouco, não encontrou ninguém suspeito. Nada. Sentou-se num banco próximo com vista para os banheiros. Fumou um cigarro, já era três e dez quando sentiu um toque no ombro. Quase levantou, assustado tentou olhar para trás mas o sujeito já estava sentando-se ao seu lado.

- E aí?
- Oi.
- Aqui, aqui está tudo.
- Calma velho, deixa o cara ali passar.
- Ah, ah ta.
- Tá, aqui. - O sujeito tomou o envelope da mão dele, abriu e inspecionou as notas, uma contagem rápida.
- Beleza. - Lhe passava um pacote de pão amassada, ele tomou-a nas mãos e sentiu seu peso e rigidez, o formato do revolver era claro ao tocar o pacote. Colocou no bolso da bermuda jeans, o desconhecido já se distanciava tranquilo. Ele, tenso, sentia o sangue pulsando na mão enquanto tocava o pacote.

Dirigiu-se para casa suspeitando de todos, cada policial que via na rua olhava para o chão, com a certeza de que sabiam que estava fazendo algo, ele sabia que eles sabiam. O chão acompanhou seus olhos até chegar em casa.
Deixou o pacote na mesa de centro, acendeu outro cigarro e finalmente foi revisar o conteúdo. Revolver calibre 35, carregado. Taurus. O peso na mão, ferro gelado. Tinha procurado na internet aonde estava a trava de segurança e a encontrou. Trocou de posição uma vez, outra. Deixou de volta no pacote. Os cigarros haviam acabado ele pensou consigo mesmo e seria a hora. Lutava com a vontade, mas era dominado, não tinha saída, estava decidido, estava com medo.

- Pelo menos mais um cigarro.

Foi pra rua como havia saído antes, chinelos e nesse caso, trêmulo, fome, angustia o corroíam. Comprou cigarro na esquina, não havia Camel, comprou Marlboro. Acendeu e foi em direção a casa. Passou na frente de um bar e decidiu que poderia tomar uma ultima cerveja. Estava tenso e quem sabe um pouco de álcool o ajudaria, era econômico nesse sentido e não havia comido o dia todo. Tomou sua cerveja com calma enquanto fumava desesperadamente. Evitou qualquer contato humano e se foi para casa. Chegava a hora.

As lagrimas escorriam pelos seus olhos, e com os dentes serrados numa mescla de raiva e angustia, tomou fôlego e colocou a arma na boca, sentiu o gelado nos lábios, o ranger do aço em seus dentes. Um gosto de sujeira o fez quase vomitar, se recompôs. Tirou o revolver da boca, gritou sozinho em casa. As lágrimas escorreram, ele olhou um quadro do casal próximo a televisão. Confirmou finalmente a trava de segurança, ele não sabia mais o que sentir. Levantou-se diante do sofá, estava precisando se firmar, mas antes mesmo de tentar desistir em uma sequencia de movimentos rápido, arma na boca, fechou os olhos e click.
O silêncio reinou logo após o estalo.

Última

Ele não era um bêbado, nem vivia drogado. Tratava-se de um cara normal, dentista, com mulher e pensando em ter filhos. Seus trinta e poucos anos chegavam aos olhos de algumas pacientes como se fosse vinte e oito e aos olhos de sua mulher como um problema de ciume constante.
Passava o dia na clinica e chegava em casa normalmente tarde, por volta das oito, a mulher o recebia com aquele beijo de comida quase pronta, ele a olhava todos os dias e quieto pensava o quando precisava dela. Na realidade gostava de se cuidar só para provocar ciumes. Também acontecia com ele quando ela ia pra faculdade de vestido, mesmo que comportado ele tinha certeza de que seus alunos a olhavam de forma diferente.

- Já fui aluno e lembro bem o que passava por nossas cabeças com uma professora assim.
- Tu sabe que sou só tua, bobo. - Tapa na bunda dele.
- Eu sei. Bom trabalho.

Cada um no seu rumo diário, e eventualmente alguns almoços juntos. Era certo que no minimo um almoço na semana, e aquelas jantinhas fora de casa com cinema ou qualquer coisa que se possa fazer juntos.
A coisa toda só mudou depois de umas altas e baixas de verão, quando ela ficou gripada. Era febre, e tosse.  Foi tratado como gripe durante alguns dias. Ela dizia que melhoraria, ele se irritava por ela não querer ir no medico, mas respeitou sua decisão.
Foi quando ela tossiu sangue que finalmente descobriram no hospital que se tratava de uma meningite tuberculosa. A pergunta do è grave foi respondida deixando claro que foi um erro deixar passar tanto tempo para ir ao médico.
Foram vários meses de tratamento com uma média de quatro drogas diárias. Dinheiro não era problema e o tratamento seguiu até que ela deixou de tomar os remédios por conta. Sentia-se bem a algum tempo e não via por que seguir tomando tanto remédio, principalmente pelo nojo que tinha dos comprimidos. Todos os dias lhe cansava e se sentia velha.
Passado alguns meses ela retorna com mesmo problema. Meningite tuberculosa. Ela não havia se curado e as bactérias desenvolveram resistência aos medicamentos. Ele a acompanhou no hospital todos os dias durante o tempo que pode. Tinha ciumes quando vinham enfermeiros atende-la, mesmo que não fosse o mesmo fetiche masculino.
Depois, em estado final ele deixou o trabalho e passava ao lado dela, lia, conversava, atualizava o face. Assim permaneceu, até o fim. Ele com seus trinta e tantos vendo sua jovem mulher morrer no hospital. Foi forte, ele fora mulherengo quando jovem mas depois dela as coisas haviam mudado. A família ajudou no que pode durante o processo, os pais de cada um visitavam, os dela, principalmente, mas quem nunca saia do quarto era ele. Chegou a brincar de pedir um pinico pra não precisar nem defecar fora do quarto.
Ela faleceu e a casa ficou cheia de memórias. Ele largou o emprego e foi pro bar.

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- Boa tarde, em que posso ajudar?
- Uma última cerveja por favor.
- Temos uma artesanal chamada República, muito boa.
- Pode ser.

Ele estranhou o pedido, levou a caneca loira com dois dedos de espuma. O homem fumava um Camel sem parar, mas bebia com calma, realmente parecia apreciar a cerveja. Não pediu a conta, deixou dinheiro em cima da mesa e se foi. Ele correu para mesa para garantir que não foram roubados mas a nota de cinquenta acalmou de imediato.

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Ele se surpreendeu quando um colega o chamou para ver a noticia no jornal. Reconheceu o a foto do homem que havia pedido cerveja no dia anterior. Cometera suicídio em casa usando uma 35. Típica notícia, os vizinhos ouviram um único disparo e chamaram a polícia que perceberam o corpo no chão da sala olhando pela janela, uma carta foi deixada para a família e nenhuma outra informação fora revelada, apenas seu nome: Ricardo Brandão de Moura
Sempre fora cético em relação a suicídios, pra ele era uma forma de chamar a atenção.

- Pelo menos esse conseguiu, nada pior que um merda tentar se suicidar e falhar nisso.

Os colegas não sabiam o que dizer e ele continuou.

- Claro, a ultima cerveja.

sexta-feira, fevereiro 1

Clássica

- E pra você?
- Ahmmm... Uma cerveja e o que tu poderia sugerir pra comer?
- Primeiro, qual cerveja? Bohemia? - Um rápido aseno de cabeça confirma o pedido.
- Pra comer tipo comida ou pra dar uma beliscada? For comida temos o prato do dia...
- Não não, pra beliscar mesmo.
- Nesse caso acho que um picadinho, não é caro e vem a calhar, que tal?
- Pode ser, mas vou querer desconto se não for tudo isso!
- Hahah, pode deixar. Tenho certeza que vai gostar.

Ele saiu e fez seu trabalho. O fim de tarde veio morno no porto e os pedidos de cerveja aumentaram conforme a noite surgiu. a musica ficou mais alta e a decoração do bar pareceu mudar com a iluminação. Luzes fracas por dentro e pequenos focos na parte de fora do bar, por baixo dos guarda-sois que agora guardavam a lua.

Aquela mesa era de uma só garota, ficou lendo um livro por ali, pediu umas três cervejas que tomou lentamente e sozinha. bonito de ver, uma morena assim. Era meio gordinha na realidade, mas tinha um corpo bem formado, ancas largas e coxas volumosas davam contraste com uma cintura que não parecia ser dela. Esguia na altura do umbigo, mesmo tendo uma barriguinha pra frente, a cintura por fim era pequena, deixando um corpo de violaocelo bem desenhado.

- Adoro musica clássica.
- Que? - Uma expressão de completo desentendimento foi o principio de um momento bem estranho.
- Ah?
- O que disse?
- Nada.
- Ah, ta...

Não entendeu a tal da musica clássica, mas de toda forma ele ficou sem jeito e teve que sumir. Só voltou quando pediu conta.

- Aqui esta.
- Certo...

Revirou sua bolsa por uns instantes e tirou umas notas. Contou uns trocados e deixou quase o valor da conta. Ele já ia calculando conforme ela desenbolsava o dinheiro e notou que ficou dois pilas a mais.

- Te sobram dois pila.
- Ah sim, foi de proposito. eu também gosto de musica clássica.
- Que?
- Tudo certo que gosto, só falar isso do nada é bem estranho, tu devia te tratar.

Ele ficou naquele sorriso amarelo parado com a mão em direção a tabuinha de conta com a nota. Ela se ajeitou e levantou enquanto ele se recompunha e recontava o dinheiro.

- No fim eu adorei o picadinho, obrigado.
- Ah, de nada. E como se chama?
- Muriel, e tu?
- Cezar, prazer. - se inclinaram e trocaram beijos de bochecha.
- Um prazer, Cezar, nos vemos. - Ela juntou sua bolsa e o livro levou no colo, estilo colegial.
- Tchau, até mais.

Fez o seu trabalho, organizou a mesa, limpou tudo e deixou o cinzeiro. Acendeu aquele cigarro merecido depois de umas horas de trabalho e pensou pra fora.

- Muriel, puta que nome feio.