terça-feira, outubro 7

A.A.

Minha primeira reunião no AA foi meio inusitada... era aquela coisa de não ter certeza se devia estar fazendo aquilo, uma dúvida de se está certo se achar um "A". Dizem que o primeiro passo é admitir e tentar se ajudar, é como começar denovo, do zero, vivendo cada dia como se fosse o último.
Entrei na sala depois de ter falado com um amigo de um hospital que me indicou o lugar. Era no centro da cidade, nada de mais, parecia mais é uma sala qualquer de aula (tinha um quadro branco no fundo) com as cadeiras desorganizadas, ou organizadas de maneira criativa...
Um tal de Hélio foi o primeiro a falar. Se apresentou, fez todas aquelas lorotas de patati patata, e falou quanto tempo estava "limpo". Em torno de duas horas segundo o que ele lembraava. Seus olhos ainda brilhando do "plim", contudo, corado de vergonha pois a instrutora do grupo o fitava com sobrancelhas cerradas e claro ar de reprovação.
Sua vida fora sempre ao redor dessa droga, vivia sempre pensando em como fazer pra ter mais disso e quanto mais conseguia, mais piorava a situação em casa. Conta que certa vez chegou em casa pela noite e tirou todos os quadros da parede, depois, utilizando urina reformulou suas paisagens. No dia seguinte sua mulher o internou e agora ele precisava frequentar o grupo ou além de dormir sempre no sofá, talvez tivesse que voltar ao internato. A parte mais engraçada da história dele era o fato de que mesmo no internato sua esposa mandava trocar sua cama por um sofá. Consequencia desse "chá de sofá" foi que ele desenvolveu trauma por sofá e via em todos os lugares possíveis de se sentar, um sofá.
Apontaram pra mim depois desse cara. Eu estava um pouco louco ainda e achei melhor ignorar a ordem inicial e levantar, mudar minha cadeira de lugar para outro ponto da roda para que pudesse ser um dos últimos. Isso supondo o ritmo anti-horário que havia sido proposto.
Seu nome era Débie. Sim, Débie. Imaginei com grandes gargalhadas internas (que me fizeram perder quase toda a sua história) todas as piadas possíveis de alguém que se chama Débie. Pense nas crianças brincando e apontando pra Débieloide (mais clássica), Débiodesnaturada (algum nerd), Débomba (piromaniaco), Débochada (a professora xingando os alunos para não Débocharem dela), Déborracha (só alguém errando o nome dela quando pedisse a borracha emprestada), Débombeta (sempre tem um lunático), Déboina (o da modinha), Débimbada (só os que já rodaram duas vezes e futuros mecânicos/pedreiros/caminhoneiros fariam essa [sem ofensas a nenhuma classe, é claro]), Déborô (utilizado como gíria alternativa de "demorô"), Dúbia (na minha opinião o melhor nesse caso, o aspirante a poeta)! Em fim... eu ri de verdade só que sem mostrar nenhum som. Obviamente o fato de correr em círculos fez o pessoal prestar um pouco mais de atenção em mim do que nela. Mas ninguém me culpou porque quase todo mundo fazia isso quando escutava ela falando...
Dérbinando, eu não prestei atenção em nada, apenas que ela sim conseguia se manter livre do vício e raramente perdia o controle. Mesmo quando exposta a condições de risco para tais viciados, ela se acalmava e pensava nas reuniões do AA com todas as pessoas falando e contando suas "horriveis" histórias.
Tiago. Ele falou seu nome assim, sem mais nem menos antes de dizer um "eu sou", "me chamo", ou qualquer tipo de introdução (ui) adequada (ai ui). A história do rapaz era comoventemente de filme. Seus pais tinham muito dinheiro, portanto, ele tinha muitas coisas, menos atenção. Era filho único (era porque faz pouco que ganhou um irmão bastardo por parte das bebedeiras do seu pai), o que piora muito sua condição desde os tempos de criação. Ele cresceu dentro das melhores escolas, teve tudo que quis e pra isso tudo não fez o menor esforço. Em meados de seu segundo grau, hoje chamado Ensino Médio, ganhou um violão autografado pelo rei Carlos (não o dos tempos feudais), Roberto Carlos. Nada de mais, um presentinho que seu pai pensou que lhe agradaria mesmo ele não sabendo tocar nada.
A propósito, pode parecer estranho o monte de histórias loucas que se lê aqui, mas pense bem... por mais difícil que seja, pessoas numa reunião dessas realmente são capazes dessas coisas... O pai do Tiago era promotor de eventos, bebia como um maluco sempre que possível e é claro, conhecia os artistas pessoalmente. A história não é sobre o pai dele, mas ele fez questão de detalhar tanto tudo que deu nojo. Finalmente entendemos o problema dele. Detalhes ao quadrado. Havia dias que saia pra ir no bar com os amigos e não conseguia parar de falar nunca, ele entrava nos detalhes de cada coisa que conhecia, desde como se explica a cor das coisas e porque normalmente olhamos mais de uma vez para os dois lados da rua antes de atravessá-la. Ele tinha esse problema em específico. E isso ele sabia ser muito bem.
Havia mais uns cinco doidos antes de mim, mas eu estou tentando parar de resumir e começar a resumir de verdade. Então vamos ao que começou me incomodando. Todos ali tinham obrigatoriamente se identificar, falar idade, de onde era, como e quando começou com o vício, explicar porque havia começado a frequentar o grupo e que se fosse mesmo por obrigação tribunal deviam ser sempre sinceros. Eu não fui diferente, falei o nome, a idade e onde morava. A parte para explicar como comecei... foi meio... difícil. Eu não sabia bem como contar isso. Agora que já montei a idéia de como comecei vou tentar resumir pra vocês:
Eu não era nenhum bebado, nem vivia drogado. Não tive muita atenção dos pais, era mais criado pelos amigos, professores, eletrodomésticos e livros que encontrava pelo caminho. Passar as tardes sozinho fez com que o vício despertasse. Tenho certeza de que já tinha uma pré disposição genética para isso, senão não seria desde pequeno tão mais sozinho que os outros. Minha mãe havia dito que eu conseguia me divertir sozinho. Não sei o que ela colocava na mamadeira, mas ela não me parece desnaturada... só trabalha muito mesmo e desde sempre não teve muito tempo pra me cuidar como uma mãe "normal". Certo, talvez um bom erro, talvez o gatilho para o vício, foi ter sido criado por alemães. Vocês sabem muito bem o que isso pode significar num vício desse gênero. Alemães fizeram história por todo o mundo, não é necessário muita explicação.
Bom, o pior aconteceu no final do primeiro grau. Cheguei em casa, morto de sede, louco do sol. Me vi sozinho em casa e visitei a geladeira. Foi inevitável. Em instantes eu estava cortando uma de minhas camisetas velhas para usar de velas no meu barco no grande e fresco mar que me esperava. Pois é, foi assim, de uma hora pra outra, eu me vi dentro do delírio.
Argumentei com o pessoal que eu não queria mais isso, que dentro da sociedade atual, essas coisas nos prejudicam, geram descrédito... É muito difícil conviver com um mundo que pensa diferente de ti, tudo se torna mais difícil do que deveria ser e a vida começa a se tornar um caos. Não se vive mais o que se é, mais um conto inventado onde nunca se pode dizer a verdade, o que se passa pela cabeça nessas horas pode parecer uma loucura tão grande que me internariam. A realidade se distorce facilmente.
Acredito que tenha sido em uma quarta-feira de noite que depois de sair do bar, eu cheguei em casa e botei tudo pra fora. Olhei o resultado flutuando... triste. Na quinta pela manhã me obriguei a faltar o trabalho por uma causa maior. Fui ver um enfermeiro que conhecia pra saber se ele não me poderia indicar algum grupo de apoio ou algo do gênero. Pronto, consegui chegar até aqui (no caso a sala de reuniões) mas de qualquer maneira menti no trabalho alegando sonolência e cansaço.
Depois de tudo explicado, me perguntaram qual, afinal, ou melhor, pra começar, qual das opções era o meu vício, especificamente em que eu era viciado. Admiti de cara. Eu preciso escrever. O tempo todo, eu quero escrever e contar a todos as minhas idéias e pensamentos mais diversos. Nem sempre isso acontece com a escrita, as vezes é vontade de montar coisas com as própias mãos. Nem que seja de lego ou algo facilmente moldável, eu prefiro fazer eu mesmo que comprar pronto. Mas o pior é a escrita. Antigamente eu escrevia mais de uma vez no mesmo papel utilizando lapis e principalmente borracha. Não importava que ninguém, nem mesmo eu, lesse. O que eu preciso é despejar a criatividade, expulsar esse mal de mim. Atualmente qualquer idéia que me parece tão simples, crua, nua, normal e razoável, é de completa repugnância para qualquer pessoa... me perdoem mas... eu não resisti e tive que escrever em letras miúdas na porta de entrada. Alcóolatras Anônimos, afinal quem no mundo pensaria que isso pode ser um grupo de Artistas Anônimos?

2 comentários:

Anônimo disse...

ótimo texto.. e com certeza o q vc faz de melhor é escrever. =]

beijos

G. Marelli disse...

Ai cara, que final tri! Muito criativo!

Mas eu saquei a alfinetada: "Déboina (o da modinha)"

da modinha, tu vai ver da modinha...